sexta-feira, 28 de agosto de 2009

leitura complementar: crônica "Minha Vizinha Especial"

[sei que esse não é um blog pessoal e sim de trabalho, de um grupo, mas quero apresentar essa crônica que fala de algo que toca em mim de uma forma especial, por falar de "sinceridade", que talvez o seu (sinceridade) excesso tenha sido o meu maior pecado nessa vida.]
Minha vizinha especial

Sábado, 1º de agosto. O relógio digital, ao lado da cama, pulsa em rubros arábicos 7h00AM. Nietzsche, nigérrimo gato com potentes olhos de farol, aguarda pacientemente o meu despertar, na clássica posição de deusa Bastet. Quando abro os olhos, salta, ágil e gracioso, sobre mim. Rotina matinal invariável.
Nesse sábado, estilhaçada pelo som da campainha. Insistente. Levanto-me cambaleante de sono e dirijo-me à porta, com Nietzsche a mordiscar meus calcanhares. Aguarda-nos o radioso sorriso de Brena. Minha vizinha especial. Acena-me com um pequeno retângulo de papel vermelho, decorado com personagens infantis da sua predileção, Pucca e o gato Mio:
_Hei, Jeanne! Hoje é o dia do meu aniversário. Trouxe o convite para a festa.
_Hum parabéns! Quantos anos?
_Dezenove. Você vai à minha festa?
_Talvez eu não possa ir, Brena, mas prometo-lhe um presente. Que tal?!...
Brena encanta-se, como habitual, com o Nietzsche, cópia viva do gato Mio estampado no convite. Acaricia-o. Nietzsche ronrona. Os dois – menina&gato – trafegam pela via alfa da comunicação. Mágica interatividade! Minha vizinha especial tem Síndrome de Down. Quando surpreende alguém a olhá-la fixamente, informa célebre e segura: “Sou especial, mas não diferente!”
“Especial”, segundo Houaiss, significa: “coisa ou pessoa em particular; exclusivo de determinado individuo; ótimo; excelente; que desperta ou evoca coisas boas”. Tem razão, a Brena. Ela é mesmo especial. Molda-se, à perfeição, aos significados dicionarizados. E em mim, particularmente, “desperta ou evoca coisas boas”.
Nesses dois anos de convívio encontro-a no elavador, na garagem, na portaria do prédio aguardando o transporte que vai conduzi-la à escola da rede municipal de Vitória, onde cursa a 7ª série, em perfeita inclusão com os demais alunos -, Brena provou ter o dom de acordar-me a ternura, o encantamento e a poesia. Compaixão? Jamais! Disso, ela não necessita. Estar com a Brenda é banhar-se na essência da pureza. Candura. Além de submeter-nos ao exercício da sua gratínia autenticidade. Quando emite opiniões, extrai o âmago mais recondito das coisas e pessoas. Elimina as “capas” civilizacionais que nos revestem. Seu olhar raio X nos atravessa. Alie-se uma outra característica marcante: intensidade. Quando Brena canta – ouço-a daqui, na biblioteca -, canta em plenos pulmões. Quando dança - e ela adora dançar!-, põe toda a alma. Brena vivencia, no seu cotidiano, os versos de Fernado Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu, exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes”.
Somente à noite, retorno ao prédio. Dirijo-me ao salão de festas. Os convidados já se foram. Ali, apenas a mãe, o padrasto e a avó. E súbito, surge a aniversariante. Bela. Lembra-me as míticas princesas dos contos de fada. Beijo-a, entregando-lhe o presente.
_Uau!... Lindo, Jeanne! Olha mãe, que lindo!...
Despeço-me. No instante em que abro a porta do elevador, Brena grita:
-Hei Jeanne, eu te amo!
Meus olhos marejam-se. Sei da surprema sinceridade da minha vizinha especial. E relampeja-me, num calafrio, a frase do escritor e cineastra Domingos de Oliveira: “A única coisa que ainda escandaliza hoje em dia é a sinceridade”.
CRÔNICA: Jeanne Bilichi_Jornal A Gazeta. 16 de agosto de 2009.

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