domingo, 3 de maio de 2009

leitura complementar: literatura e realidade

[analise a reportagem pensando nos dois temas desta discussão: as ligações entre literatura e realidade e a influência do mercado sobre as formas literárias].
Tão novos, tão polêmicos
(Revista Veja. 2004)

Escritores jovens causam barulho com livros que abrem uma janela para o lado secreto da adolescência

Desde que lançou o romance Doze, aos 17 anos, o americano Nick McDonell, hoje com 20, vem sendo abordado por pais preocupados. Querem saber se os adolescentes de fato freqüentam festas com drogas e muito sexo, tal como a que é descrita no livro. A mesma reação escandalizada cerca os livros da francesa Lolita Pille, 21, e da italiana Melissa Panarello, 18. A primeira tinha 19 quando lançou Hell – Paris 75016, em que retrata a existência desregrada de uma patricinha parisiense. Melissa publicou no ano passado Cem Escovadas Antes de Dormir, acusado de pornográfico por seu relato das atividades sexuais atípicas (leia-se orgias e sadomasoquismo) de uma adolescente. Também elas são bombardeadas por perguntas sobre as loucuras que descrevem. As respostas dos três autores variam. Melissa e Lolita juram que seus livros são autobiográficos, enquanto McDonell não tinha experiência com drogas quando escreveu Doze. Seja como for, os três livros se alimentam de uma mesma idéia: a de que os adolescentes formam uma tribo à parte e têm vidas que os adultos desconhecem. Os escritores jovens fazem barulho ao abrir janelas para um mundo supostamente escondido de sentimentos e experiências.
Essa janela literária é relativamente recente. A história da literatura registra alguns talentos precoces, como o poeta francês Arthur Rimbaud e, no Brasil, Álvares de Azevedo. Esses autores não tinham, porém, a juventude como tema central. Há também uma tradição de obras que dramatizam a passagem da adolescência para a maturidade. São os "romances de formação" – Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, é o maior exemplo. São todos livros escritos por adultos. Hoje, pelo contrário, vêem-se cada vez mais adolescentes escrevendo sobre adolescência. A vertente mais encorpada dessa literatura é confessional. Memórias de jovens que viveram situações extremas ou momentos históricos traumáticos constituem um filão próprio. O clássico do gênero é O Diário de Anne Frank, escrito por uma adolescente judia que morreu num campo de concentração. Há também Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída, de 1979 – mas Christiane não escrevia: o livro é um depoimento registrado por jornalistas. Na mesma linha, nos anos 90, durante a guerra na Bósnia, uma menina de 11 anos, Zlata Filipovic, registrou seu cotidiano em Saravejo em outro diário transformado em livro. No Brasil, pode-se lembrar de Feliz Ano Velho, escrito por Marcelo Rubens Paiva aos 23 anos, e, mais recentemente, da ex-menina de rua Esmeralda Ortiz, que contou suas experiências em Por que Não Dancei.
Lançar um texto de ficção que desperte algum interesse é mais difícil e incomum. "Desde os 9 anos eu queria publicar um livro. Mas precisei crescer antes de conseguir escrever algo que valesse a pena", conta a carioca Simone Campos, de 20 anos, que publicou a novela No Shopping quando tinha 17. Ao contrário do que acontece na música ou na matemática, é raro realizar feitos literários muito cedo. Tanto assim que o dramaturgo Nelson Rodrigues, com sua acidez habitual, oferecia um único conselho aos jovens que desejavam escrever: envelhecer depressa. Mas, independentemente das limitações que a crítica – e a autocrítica – imponha à garotada com ambições literárias, o mercado editorial parece ter encontrado um espaço para os seus livros. A cultura jovem é cada vez mais variada, cada vez mais tomada por tipos peculiares de música, de gíria, de drogas. Não faltará lugar para aqueles que proponham abrir uma fresta para esse mundo – com um pouco mais ou um pouco menos de ficção.
Realidade cifrada

– Você disse que todo bom romance é uma transposição poética da realidade. Poderia explicar? – Sim, acho que um romance é uma representação cifrada da realidade. A realidade que se maneja num romance é diferente da realidade da vida, embora se apóie nela. – O tratamento da realidade nos seus livros recebeu o nome de realismo mágico. Tenho a impressão de que seus leitores europeus percebem a magia das coisas que você conta, mas não a realidade que as inspira... – Certamente porque o seu racionalismo os impede de ver que a realidade não termina no preço dos tomates ou dos ovos. A vida cotidiana na América Latina nos demonstra que a realidade está cheia de coisas extraordinárias. Conheço gente inculta que leu Cem Anos de Solidão com muito prazer e cuidado, mas sem surpresa alguma, pois afinal não lhes conto nada que não pareça com a vida que eles vivem. – Então, tudo o que você põe nos seus livros tem uma base real? – Não há nos meus romances uma linha que não esteja baseada na realidade. Texto adaptado de Cheiro de Goiaba, Gabriel García Márquez, Ed. Record, tel. (21) 2585-2000
Basta mobiliar o mundo
Entendo que para contar é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado possível. Constrói-se um rio e na margem esquerda coloca-se um pescador, e, se esse pescador possui um temperamento agressivo e uma folha penal pouco limpa, pronto: pode-se começar a escrever. Que faz um pescador? Pesca. E depois? Ou há peixes que mordem a isca ou não há. Se há, o pescador os fisga e vai para casa todo contente. Fim da história. Se não há, como ele é temperamental, talvez se irrite, talvez quebre a vara de pescar. Não é muita coisa, mas já é um esboço. Mas existe um provérbio indiano que diz "senta-te à beira do rio e espera, o cadáver do teu inimigo não tardará a passar". E se, levado pela correnteza, passasse um cadáver? Não se pode esquecer que o meu pescador tem uma folha penal suja. Quererá correr o risco de meter-se na enrascada? Fugirá, fingindo não ver o cadáver? Temperamental como é, ficará furioso por não ter realizado ele próprio a sonhada vingança? Como se vê, bastou mobiliar nosso mundo e já se tem o início de uma história. O problema é construir o mundo, as palavras virão quase por si sós.
(Texto adaptado de Pós-Escrito a O Nome da Rosa, Umberto Eco, Ed. Nova Fronteira, tel. (21) 2537-8770)
Basta mobiliar o mundo

Entendo que para contar é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado possível. Constrói-se um rio e na margem esquerda coloca-se um pescador, e, se esse pescador possui um temperamento agressivo e uma folha penal pouco limpa, pronto: pode-se começar a escrever. Que faz um pescador? Pesca. E depois? Ou há peixes que mordem a isca ou não há. Se há, o pescador os fisga e vai para casa todo contente. Fim da história. Se não há, como ele é temperamental, talvez se irrite, talvez quebre a vara de pescar. Não é muita coisa, mas já é um esboço. Mas existe um provérbio indiano que diz "senta-te à beira do rio e espera, o cadáver do teu inimigo não tardará a passar". E se, levado pela correnteza, passasse um cadáver? Não se pode esquecer que o meu pescador tem uma folha penal suja. Quererá correr o risco de meter-se na enrascada? Fugirá, fingindo não ver o cadáver? Temperamental como é, ficará furioso por não ter realizado ele próprio a sonhada vingança? Como se vê, bastou mobiliar nosso mundo e já se tem o início de uma história. O problema é construir o mundo, as palavras virão quase por si sós.
(Texto adaptado de Pós-Escrito a O Nome da Rosa, Umberto Eco, Ed. Nova Fronteira, tel. (21) 2537-8770)

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